\u00c9 dif\u00edcil aceitar a exist\u00eancia do mal no mundo. Deve ser por isso que vivemos em busca dos culpados pela maldade.<\/p>\n
Hoje em dia as teorias abundam, mas houve um tempo em que era f\u00e1cil: a culpa era das bruxas. Elas eram pessoas com a vontade fraca que davam lugar \u00e0 maldade soprada pelo diabo. A ideia vinha do tinhoso, mas a responsabilidade era delas.<\/p>\n
Pode parecer absurdo aos olhos de hoje, mas o corpo te\u00f3rico por tr\u00e1s da ideia, misturando teologia, folclore e lendas urbanas, era levado a s\u00e9rio. A ponto de se organizarem julgamentos formais para determinar se uma pessoa acusada de bruxaria era culpada. Havia testemunhos, jurados, ju\u00edzes e at\u00e9 per\u00edcias m\u00e9dicas. O surpreendente \u00e9 que essa cren\u00e7a n\u00e3o se restringiu ao mal afamado per\u00edodo das trevas.<\/p>\n
Ap\u00f3s o Renascimento e durante a Revolu\u00e7\u00e3o Cient\u00edfica, o movimento vicejou, sendo emblem\u00e1tico o processo contra Katharina Kepler, que foi defendida pelo seu filho, o astr\u00f4nomo Johannes Kepler. Possivelmente a \u00faltima execu\u00e7\u00e3o de algu\u00e9m condenada por feiti\u00e7aria ocorreu s\u00f3 em 1811. Em plena Europa do s\u00e9culo 19.<\/p>\n
Um dos mais famosos casos foi o de Salem, aldeia de Massachusetts (EUA), em 1692. Tendo inspirado pe\u00e7a de teatro, filme, s\u00e9rie, ficou conhecido como As Bruxas de Salem. Neste ano foi lan\u00e7ado em portugu\u00eas o excelente livro As Bruxas \u2013 Intriga, Trai\u00e7\u00e3o e Histeria em Salem (Editora Zahar), da escritora Stacy Schiff, vencedora do Pr\u00eamio
\nPulitzer em 2000.<\/p>\n
O livro \u00e9 impressionante em diversos n\u00edveis. \u00c9 enorme a quantidade de documentos analisados, de transcri\u00e7\u00f5es dos julgamentos a depoimentos de testemunhas, de serm\u00f5es pregados por religiosos envolvidos no processo a livros consultados pelos ju\u00edzes. Mais surpreendente, por\u00e9m, \u00e9 a capacidade de Schiff costurar todas essas informa\u00e7\u00f5es numa hist\u00f3ria cronol\u00f3gica e envolvente.<\/p>\n
No entanto, sem querer tirar em nada o m\u00e9rito da autora, a estrela do livro \u00e9 a hist\u00f3ria em si. Resumindo demais, tudo come\u00e7ou quando algumas meninas apresentaram crises que hoje seriam diagnosticadas como psicol\u00f3gicas, mas as atribu\u00edram \u00e0 feiti\u00e7aria. Suspeitas foram levantadas e pessoas, ouvidas, at\u00e9 que uma escrava acusada resolveu
\ncontar hist\u00f3rias inspiradas no vodu.<\/p>\n
A partir da\u00ed os eventos passam a ganhar import\u00e2ncia na cidade, aumentando exponencialmente o n\u00famero de cidad\u00e3os tanto afetados por sintomas como acusados de bruxaria. Com a popula\u00e7\u00e3o convencida do problema teve in\u00edcio uma \u2013 literal \u2013 ca\u00e7a \u00e0s bruxas. Tornou-se comum acusar outras pessoas ao ser acusado \u2013 era mais f\u00e1cil confirmar a hist\u00f3ria e se dizer v\u00edtima do que mostrar a insanidade que tinha lugar ali.<\/p>\n
At\u00e9 os ju\u00edzes j\u00e1 entravam na Corte convencidos da culpa dos acusados. As meninas diziam que viam os espectros voando pela sala, e eles acreditavam. Era \u201cum mundo em que, quando uma menina apontava uma figura invis\u00edvel, voc\u00ea acreditava que ela estava certa e voc\u00ea, cego\u201d, escreve Schiff.<\/p>\n
Uma acusada dizia que n\u00e3o era bruxa e nem sabia como eram. \u201cEnt\u00e3o como sabe que n\u00e3o \u00e9 bruxa?\u201d, perguntou um juiz. Outra, ao perceber que suas palavras seriam fatalmente distorcidas, resignou-se: \u201cEst\u00e3o todos contra mim e n\u00e3o posso fazer nada\u201d. Quem fosse um pouco mais c\u00e9tico e questionasse os procedimentos acabava ele mesmo acusado.
\nUm guarda que n\u00e3o acreditou em umas acusa\u00e7\u00f5es foi preso. \u201cSe voc\u00ea n\u00e3o \u00e9 a favor de Cristo e suas obras, \u00e9 contra ele\u201d, repetia-se. Ao fim, 19 pessoas foram executadas \u2013 14 mulheres e cinco homens \u2013 e pouco ap\u00f3s um ano ningu\u00e9m queria falar nisso. Constrangimento e culpa perpassavam as lembran\u00e7as dos envolvidos.<\/p>\n
N\u00e3o me parece razo\u00e1vel, por\u00e9m, acreditar que todas as pessoas da cidade eram simplesmente desalmadas. Quest\u00f5es de g\u00eanero, momento pol\u00edtico e vieses psicol\u00f3gicos est\u00e3o por tr\u00e1s dessa mancha hist\u00f3rica. O importante \u00e9 ver como podemos ser injustos \u2013 achando fazer justi\u00e7a \u2013 quando dividimos o mundo entre n\u00f3s e eles e nos convencemos de que eles s\u00e3o culpados a priori.<\/p>\n","protected":false},"excerpt":{"rendered":"